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quinta-feira, 8 de outubro de 2015

A MAGIA DO VALÃO DA QUARTA PONTE - conto de pescaria - Deodoro Branchi

A MAGIA DO VALÃO DA QUARTA PONTE
                                                           Já vai bem longe este tempo, bem sei
                                                                       Tao longe que ate penso que eu sonhei...
                                                           (Solange Maria e Adauto Santos)
          Contava eu com 10 ou 11 anos, um menino franzino, amarelado pelos chás de marcela, que a mãe insistia em me fazer tomar pra passar minhas dores de estômago, na beira do fogão à lenha, e ficava boquiaberto ouvindo as histórias que meus irmãos mais velhos contavam acerca das pescarias com o pai no famoso valão da quarta ponte do Guaíba.

          Tudo era magia, mas no intuito de amedrontar mesmo, com bichos estranhos que entravam pelas roupas, estrelas que se moviam, sons aterrorizantes, peixes com enormes bocarras e presas que poderiam decepar um membro, o fogo que emitia centelhas para além do universo, o sono pouco restaurador, o frio da madrugada, a Estrela Dalva ao amanhecer ao pé da velha figueira. Tudo era improviso, contavam eles, se dormia ao relento, naquela época sequer havia a previsão do tempo, era contar com a sorte, e isso meus manos maiores me deixavam bem claro – havia de ser corajoso para enfrentar tamanha aventura.

          Ciente disso tudo, achava que chegara minha hora, já era um menino feito. Teria, por fim, de ter meu batismo, afinal era filho do Romano, o homem sem medos, o pai protetor, o descobridor de terras alheias, que sequer conhecia o dono daqueles pagos, mas que escolhera aquele lugar para que seus filhos o desbravassem, tal como fazem os escoteiros, de uma maneira bastante rudimentar, em razão das finanças sempre parcas, naqueles tempos de vacas magras.

          Não vou recordar, por certo, a época do ano da primeira epopeia, mas dos preparativos com certeza. O comum era organizar as coisas no sábado de manha – material de pesca, facas, panelas, chaleira, copos, pratos, lanterna, minhocas, roupas (em especial os famosos capotes da Rede Ferroviária Federal, onde o pai trabalhava), pequenas tralhas e o rádio de pilha que seria o nosso contato com o mundo. Logo depois do almoço, era a hora de fazer as compras da comida, afinal, iríamos varar a noite e era preciso nos abastecer com um rancho robusto para aguentarmos o tranco da empreitada, que se vislumbrava grande. Grandiosa. Então fomos ao açougue e o pai comprou um coração de boi para o churrasco, e na tendinha uma penca de banana, um pão e um pedaço de queijo. Talvez, hoje me falha a memória, alguma fruta da época. Pronto, era tudo o que a renda familiar nos permitia comprar. O pai dizia – se pegarmos uns peixes assamos no fogo, pra complementar as refeições.

          Aquilo tudo era o máximo pra mim, nada me importava naquele momento – se choveria, se haveria comida suficiente, se eu teria direito a pescar, se na figueira haveria abrigo para os Branchi. Chegara a hora de desbravar aqueles campos tão falados e decantados pelos manos experientes. Eu, aquele menino franzino e amarelado ingressaria naquele mundo de fantasia, do qual nunca me desliguei.

          Após a benção da mãe, a meia tarde fomos para a parada de ônibus na Farrapos, naqueles tempos ainda de paralelepípedos irregulares. Havia sol, e este refletia nas pedras transmitindo um brilho de esperança e certeza que tudo iria correr bem, que não haveria chuva, que o frio seria ameno, que os mantimentos eram mais que suficientes, que os meus medos haviam ficado num quartinho de oito metros quadrados onde dormiam cinco meninos na Rua São Carlos n. 724, e que, principalmente, a pesca seria farta, pois meu velho pai sempre dizia que pescaria boa era sem vento, e a calmaria se fazia presente. Ansioso, aguardávamos o ônibus da Viação Guaíba, branco com vermelho, que nos conduziria aquela local magico e inóspito para mim.




          Era o pai, mais meus três irmãos, cada um incumbido de carregar parte da tralha. Descemos antes da quarta ponte e seguimos a direita, por uma estrada íngreme. Depois os campos verdejantes, já que é comum o Rio Guaíba invadir áreas para se espraiar naquela região. Algumas porteiras, um pequeno lodaçal e lá adiante se avistava a frondosa figueira centenária, que seria o nosso abrigo, nosso porto seguro. Como dissera, não se conhecia o proprietário daquelas terras, que, por certo, nos recebia sempre com um boas vindas, pois nunca houve uma recusa para cruzar e nos abrigar em seu campo. Outros tempos.

         


Chegando ao local, hora de montar o acampamento. Após, teríamos que providenciar os caniços de taquara, pois naqueles tempos não havia a fartura de varas e material de pesca como nos dias de hoje, pegar uns lambaris para isca e catar o máximo de lenha que podíamos. A noite se avizinhava, e, embora amena, era preciso colher lenha da boa para o braseiro, haja vista que o churrasco de coração bovino prometia ser o ponto alto daquela primeira pescaria.

          Tudo providenciado, o dia se pondo, começou aquele friozinho na barriga. Será que tudo que meus manos haviam contado seria verdade... A noite chegando, o fogo ardendo, os sons da noite, a boa conversa com os companheiros, as primeiras revisadas de linhas de espera, as maiores traíras que eu vi fisgadas até então, as andanças pelos campos do bom homem, a via láctea tal como se via em livros acima de nossas cabeças e o crepitar do fogo a criar novas estrelas. Os medos sendo engolidos, um por um, naquela atividade sem fim. Era um menino que descobria, ao relento, que aquele momento jamais sairia dos meus pensamentos. Ao repousar no campo aberto, abrigado tão somente pelo capote da RFFSA, vez que outra abria os olhos, na madrugada, para ver as estrelas que mudavam de lugar, e eu dançando, cá na terra, com a ursa maior, as três marias, o cruzeiro do sul e encerrando o baile com a estrela Dalva.

          Foi como o primeiro amor, tudo certo e retilíneo. Cruzara a noite sem sobressaltos. A barra do novo dia se afirmava no horizonte, vencera aquele desafio, estava batizado e pronto para as próximas. Carimbei minha carteira, não ficaria mais em casa nas próximas. Teria, sim, que contar aos irmãos menores as mesmas histórias assombrosas que os manos vividos e curtidos me pregaram. Agora, como diria o Chico, eu era um herói, um desbravador do valão da quarta ponte do Guaiba.

          Não sei quantas, e quantas vezes, voltei lá, ao relento, no abrigo da velha Figueira, castigada pelas centenas de fogueiras acessas ao seu pé. Até depois da adolescência para lá retornei, junto com o pai, tios, os irmãos, amigos e até desconhecidos convidados. Cada uma dessas idas teve uma história, mas nenhuma se igualou ao primeiro encontro com aquele canto de mundo que fez parte de nossas vidas. Tenho bem vivo na minha memória esta primeira incursão fora de casa. Se a pesca foi farta, não lembro com certeza, mas que noutro dia ao meio dia saboreamos umas traíras assadas nos espetos de paus, uma dádiva para recompor as energias para cruzar os campos do desconhecido e deixar nossas pegadas indeléveis, que até hoje se fazem presentes nos caminhos que levam a saudosa quarta ponte do velho Guaíba.



terça-feira, 19 de maio de 2015