A MAGIA DO VALÃO DA QUARTA
PONTE
Já
vai bem longe este tempo, bem sei
Tao
longe que ate penso que eu sonhei...
(Solange Maria e Adauto Santos)
Contava eu com 10 ou 11 anos, um menino franzino, amarelado
pelos chás de marcela, que a mãe insistia em me fazer tomar pra passar minhas
dores de estômago, na beira do fogão à lenha, e ficava boquiaberto ouvindo as
histórias que meus irmãos mais velhos contavam acerca das pescarias com o pai
no famoso valão da quarta ponte do Guaíba.
Tudo era magia, mas no intuito de amedrontar mesmo, com
bichos estranhos que entravam pelas roupas, estrelas que se moviam, sons
aterrorizantes, peixes com enormes bocarras e presas que poderiam decepar um
membro, o fogo que emitia centelhas para além do universo, o sono pouco restaurador,
o frio da madrugada, a Estrela Dalva ao amanhecer ao pé da velha figueira. Tudo
era improviso, contavam eles, se dormia ao relento, naquela época sequer havia
a previsão do tempo, era contar com a sorte, e isso meus manos maiores me
deixavam bem claro – havia de ser corajoso para enfrentar tamanha aventura.
Ciente disso tudo, achava que chegara minha hora, já era um
menino feito. Teria, por fim, de ter meu batismo, afinal era filho do Romano, o
homem sem medos, o pai protetor, o descobridor de terras alheias, que sequer
conhecia o dono daqueles pagos, mas que escolhera aquele lugar para que seus
filhos o desbravassem, tal como fazem os escoteiros, de uma maneira bastante rudimentar,
em razão das finanças sempre parcas, naqueles tempos de vacas magras.
Não vou recordar, por certo, a época do ano da primeira
epopeia, mas dos preparativos com certeza. O comum era organizar as coisas no
sábado de manha – material de pesca, facas, panelas, chaleira, copos, pratos,
lanterna, minhocas, roupas (em especial os famosos capotes da Rede Ferroviária
Federal, onde o pai trabalhava), pequenas tralhas e o rádio de pilha que seria
o nosso contato com o mundo. Logo depois do almoço, era a hora de fazer as
compras da comida, afinal, iríamos varar a noite e era preciso nos abastecer
com um rancho robusto para aguentarmos o tranco da empreitada, que se
vislumbrava grande. Grandiosa. Então fomos ao açougue e o pai comprou um
coração de boi para o churrasco, e na tendinha uma penca de banana, um pão e um
pedaço de queijo. Talvez, hoje me falha a memória, alguma fruta da época.
Pronto, era tudo o que a renda familiar nos permitia comprar. O pai dizia – se
pegarmos uns peixes assamos no fogo, pra complementar as refeições.
Aquilo tudo era o máximo pra mim, nada me importava naquele
momento – se choveria, se haveria comida suficiente, se eu teria direito a
pescar, se na figueira haveria abrigo para os Branchi. Chegara a hora de desbravar aqueles campos tão falados e
decantados pelos manos experientes. Eu, aquele menino
franzino e amarelado ingressaria naquele mundo de fantasia, do qual nunca me
desliguei.
Após a benção da mãe, a meia tarde fomos para a parada de
ônibus na Farrapos, naqueles tempos ainda de paralelepípedos irregulares. Havia
sol, e este refletia nas pedras transmitindo um brilho de esperança e certeza
que tudo iria correr bem, que não haveria chuva, que o frio seria ameno, que os
mantimentos eram mais que suficientes, que os meus medos haviam ficado num
quartinho de oito metros quadrados onde dormiam cinco meninos na Rua São Carlos
n. 724, e que, principalmente, a pesca seria farta, pois meu velho pai sempre
dizia que pescaria boa era sem vento, e a calmaria se fazia presente. Ansioso,
aguardávamos o ônibus da Viação Guaíba, branco com vermelho, que nos conduziria
aquela local magico e inóspito para mim.
Era o pai, mais meus três irmãos, cada um incumbido de
carregar parte da tralha. Descemos antes da quarta ponte e seguimos a direita,
por uma estrada íngreme. Depois os campos verdejantes, já que é comum o Rio
Guaíba invadir áreas para se espraiar naquela região. Algumas porteiras, um
pequeno lodaçal e lá adiante se avistava a frondosa figueira centenária, que
seria o nosso abrigo, nosso porto seguro. Como dissera, não se conhecia o
proprietário daquelas terras, que, por certo, nos recebia sempre com um boas
vindas, pois nunca houve uma recusa para cruzar e nos abrigar em seu campo.
Outros tempos.
Chegando
ao local, hora de montar o acampamento. Após, teríamos que providenciar os
caniços de taquara, pois naqueles tempos não havia a fartura de varas e
material de pesca como nos dias de hoje, pegar uns lambaris para isca e catar o
máximo de lenha que podíamos. A noite se avizinhava, e, embora amena, era
preciso colher lenha da boa para o braseiro, haja vista que o churrasco de
coração bovino prometia ser o ponto alto daquela primeira pescaria.
Tudo providenciado, o dia se pondo, começou aquele
friozinho na barriga. Será que tudo que meus manos haviam contado seria
verdade... A noite chegando, o fogo ardendo, os sons da noite, a boa conversa
com os companheiros, as primeiras revisadas de linhas de espera, as maiores
traíras que eu vi fisgadas até então, as andanças pelos campos do bom homem, a
via láctea tal como se via em livros acima de nossas cabeças e o crepitar do
fogo a criar novas estrelas. Os medos sendo engolidos, um por um, naquela
atividade sem fim. Era um menino que descobria, ao relento, que aquele momento
jamais sairia dos meus pensamentos. Ao repousar no campo aberto, abrigado tão
somente pelo capote da RFFSA, vez que outra abria os olhos, na madrugada, para
ver as estrelas que mudavam de lugar, e eu dançando, cá na terra, com a ursa
maior, as três marias, o cruzeiro do sul e encerrando o baile com a estrela
Dalva.
Foi como o primeiro amor, tudo certo e retilíneo. Cruzara a
noite sem sobressaltos. A barra do novo dia se afirmava no horizonte, vencera
aquele desafio, estava batizado e pronto para as próximas. Carimbei minha
carteira, não ficaria mais em casa nas próximas. Teria, sim, que contar aos
irmãos menores as mesmas histórias assombrosas que os manos vividos e curtidos
me pregaram. Agora, como diria o Chico, eu era um herói, um desbravador do
valão da quarta ponte do Guaiba.
Não sei quantas, e quantas vezes, voltei lá, ao relento, no
abrigo da velha Figueira, castigada pelas centenas de fogueiras acessas ao seu
pé. Até depois da adolescência para lá retornei, junto com o pai, tios, os
irmãos, amigos e até desconhecidos convidados. Cada uma dessas idas teve uma história,
mas nenhuma se igualou ao primeiro encontro com aquele canto de mundo que fez
parte de nossas vidas. Tenho bem vivo na minha memória esta primeira incursão
fora de casa. Se a pesca foi farta, não lembro com certeza, mas que noutro dia
ao meio dia saboreamos umas traíras assadas nos espetos de paus, uma dádiva
para recompor as energias para cruzar os campos do desconhecido e deixar nossas
pegadas indeléveis, que até hoje se fazem presentes nos caminhos que levam a
saudosa quarta ponte do velho Guaíba.